domingo, 12 de agosto de 2012

Nair de Teffé. A protetora dos músicos populares.

Já tive oportunidade de escrever nesse blog diversos exemplos do preconceito que sofriam os músicos populares no início do século. Instrumentos com pandeiro e violão eram considerados “coisa de malandro” e, por isso, os músicos eram perseguidos pela polícia. Alguns deles chegavam a ter seus dedos “vistoriados” pelos homens da lei, a procura de calos denunciadores da intimidade do músico com o violão ou cavaquinho. Ficou célebre, por exemplo, o episódio envolvendo a apreensão, pela polícia, do pandeiro do compositor João da Baiana (veja aqui). O grande Pixinguinha, Donga e os demais componentes dos Oito Batutas, mesmo depois de uma temporada de sucesso em Paris, chegaram a ser barrados na entrada  de um hotel onde seriam homenageados e tiveram que se submeter à humilhação de entrar pela cozinha. O episódio seria a inspiração para o Choro "Lamentos" (mais detalhes aqui).

É fato, parte da sociedade da época virava as costas para os músicos e ritmos populares como o maxixe, mas esses tinham também seus defensores. Pinheiro Machado, o poderoso senador pelo Rio Grande do Sul, foi um deles, protegendo nosso João da Baiana de novos constrangimentos, ao presenteá-lo com um novo pandeiro, dessa vez com uma dedicatória identificando-o como doador - ao ver a assinatura do senador no pandeiro, policial nenhum se atreveria a confiscá-lo.

Outra personalidade a desafiar os costumes foi Nair de Teffé, segunda esposa do Presidente da República, o Marechal Hermes da Fonseca, que governou o Brasil entre 1910 e 1914. Nair de Teffé Von Hoonholtz (1886-1981), seu nome de batismo, tinha 27 anos quando casou com o já quase sexagenário marechal. Tinha educação esmerada - chegou a estudar em Paris, Marselha e Nice. Era ótima caricaturista, tocava piano e tinha comportamento bastante avançado para a época.

A jovem primeira-dama escandalizou a sociedade conservadora do Rio de Janeiro ao promover saraus nos salões do Palácio do Catete, dando oportunidade ao músico Catulo da Paixão Cearense de introduzir o violão, instrumento, até então, renegado nos salões da elite brasileira. A primeira dama, realmente, tinha grande paixão pela música popular e ficara intrigada ao ouvir um comentário de Catulo de que nas recepções oficiais só se tocava música estrangeira. Assim, em 26 de outubro de 1914, aproveitando as solenidades de despedida da gestão do marido, abriu espaço, em uma recepção oficial, para a música brasileira com direito a desempenho pessoal tocando o maxixe “Corta-Jaca”, da lendária pianista brasileira Chiquinha Gonzaga, a quem a primeira dama nutria uma grande admiração. 

O evento ficaria conhecido como “A Noite do Corta-Jaca”. Anos depois, Rian - pseudônimo utilizado pela polêmica Primeira-dama (Nair ao contrário) - declararia que a festa foi um sucesso e definiu o evento com o termo “Noite prafrentex” e que havia desafiado a sociedade que valorizava o erudito em favor do ritmo popular brasileiro.Na verdade, o Maxixe já fazia sucesso na Europa, principalmente na França, onde foi difundido por artistas brasileiros, a exemplo do dançarino Duque. O ritmo era dançado com características sensuais e incomodava até a alta cúpula da Igreja Católica que o considerava, em conjunto com o tango argentino, ofensivo à moral e, portanto, proibida a cristãos. Ficaram famosas as quadrinhas popularizadas pelo espírito gozador do Carioca.

Se o santo Padre soubesse
O gosto que o tango tem,
Viria do Vaticano
Dançar o maxixe também.


Dentro desse clima de embate entre defensores do excomungado ritmo nacional e a corrente mais conservadora, o atrevimento da Primeira Dama gerou uma série de críticas. Jornais estamparam manchetes, muros amanheceram pichados com caricaturas de “Dudu da Urucubaca” - apelido conferido ao presidente, por ser considerado azarado e vítima de várias crises no seu governo, como a Revolta da Chibata. Quadrinhas satíricas apareciam nos jornais ridicularizando o velho presidente, coisas como:

O Duduzinho
Da Urucubaca
É o homenzinho
Do Corta-jaca

[...]


Mulata de perna grossa

Cavaca no chão, cavaca

Quero ver para quantos vales

No jogo do Corta-jaca

[...]


Não uso arma nenhuma,

Nem bacamarte, nem faca!

Uso apenas o meu “pinho”

Pra tocar o "Corta-jaca”!

...

Na quitanda tem legumes

No açougue carne de vaca

Na padaria tem roscas
No Catete “Corta-Jaca”.

[...]


Dentro desse clima, até o nosso grande Rui Barbosa, que era visto nos cinemas ouvindo os recitais de Ernesto Nazareth (ver detalhes aqui), indignou-se e proferiu um violento discurso no Senado Federal:

“[...] Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial em que diante do corpo diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o Corta-Jaca à altura de uma instituição social. Mas o Corta-Jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o Corta-Jaca é executado com todas as honras da música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria?”

Hoje considerado uma tolice preconceituosa, o que Rui Barbosa buscava no discurso era desgastar, ainda mais, a imagem do presidente Hermes, seu opositor político e que o derrotara na última eleição presidencial, em um pleito, como era comum na época, marcado por denuncias de fraudes eleitorais. Nair iria se vingar publicando uma caricatura ridicularizando o nosso Águia de Haia. Fala-se que um irritado Rui Barbosa teria retrucado:  “Certas mocinhas se divertem fazendo gracejos à custa de homens sérios como eu.”

O desgaste político sofrido pelo presidente, que já não era muito popular, foi evidente, mas não adiantou tanta indignação dos mais conservadores e do nosso grande civilista baiano: aos poucos, nossos pioneiros do samba, graças a seus protetores e, obviamente, grande talento, foram ganhando espaço nos salões da classe média. O nosso maxixe ia amadurecendo, aos poucos ganhava um ritmo mais veloz que se consolidaria como o preferido dos brasileiros: nasceria em breve o nosso querido samba na forma que conhecemos agora.

Ouça o tango brasileiro "Corta-Jaca"  também conhecido como Gaúcho.




Fontes:
Lago, Mário, Na Rolança dos tempos, Editora José Olimpio, 2011.
Diniz, Edinha, Chiquinha Gonzaga. Uma história de Vida, Editora Zahar, 2009.

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